quarta-feira, 8 de agosto de 2012

DRUMMOND, CRONICA E POESIA

Drummond, crônica e poesia ImprimirE-mail
fotoO propósito deste artigo é apresentar aos leitores, através da seleção de três crônicas de Carlos Drummond de Andrade, escritas entre os anos de 1966 e 1967, a manifestação dos aspectos transitivos da poesia expostos por Pedro Lyra que, inseridas na crônica, podem representar a consciência poética do cronista. Desta forma, demonstra-se de que maneira a poesia é inserida dentro da crônica do autor, ressaltando-se a adoção de uma postura hermenêutica para o seu desenvolvimento de modo em que nos expomos às novas possibilidades de interpretação sobre os objetos de estudo.
DRUMMOND, CRÔNICA E POESIA:A poética na crônica de Carlos Drummond de Andrade
Tiago Ribeiro Santos1
Carlos Alberto Silva da Silva2
"Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo." (Wittgenstein)
Palavras-chave: Carlos Drummond de Andrade, Crônica, Poesia.
Crônica: noções sobre sua origem
Com um olhar histórico, Sousa (2005, p. 18) registra que a crônica se caracteriza como uma “forma mista entre o jornalismo e a história”, cujo florescimento se dá na antiga Grécia quando as crônicas eram copiadas à mão e enviadas à classe nobre e eclesiástica, contendo os fatos atuais e de interesse desta classe. Já no Brasil, dentro do sentido literal da crônica, Sá (2002, p. 5) enaltece a importância do cronista Pero Vaz de Caminha em nosso país ao recriar “com engenho e arte” o que podia ser visto “no contato direto com os índios e seus costumes, naquele instante de confronto entre a cultura européia e a cultura primitiva” através da Carta a El Rey Dom Manuel.
Exemplos como estes demonstram que a crônica percorre um longo período histórico até chegar ao espaço do jornal. Apoiados em Melo (2003), destacamos que a demanda que favoreceu a crônica, como um produto atualmente jornalístico, deve-se inicialmente às condições salariais de escritores no final do século XIX. Com um emprego remunerado, homens de letras recorreram à imprensa como fonte de sustentação, uma vez que a produção literária no Brasil não fosse capaz de mantê-los em condição economicamente estável e, ainda assim, alimentando o jornal com uma produção para o deleite da burguesia que começava a se ascender no Brasil.
A crônica no jornal
É dentro dos jornais que a crônica começa a ganhar características próprias a ponto de se tornar um produto jornalístico. Melo (2003) sustenta a ideia de produto, uma vez que a crônica é dependente do próprio jornal para ser expressa publicamente. Além disso, o autor se refere à crônica como um vínculo à realidade porque é alimentada por fatos cotidianos, preenchendo condições essenciais da manifestação jornalística como a atualidade, a oportunidade e a difusão.
Com o apoio de Coutinho (1965 apud BELTRÂO, 1980), percebe-se que a crônica jornalística é atualmente definida como um texto breve, cuja tentativa está em interpretar a realidade sobre as reações que o autor cronista tem diante dos fatos. Deste modo, abrindo margens a uma reação humana e sincera que está diretamente ligada a sua personalidade como cronista.
Ainda em concordância com Coutinho (1965 apud BELTRÂO, 1980) podemos, através da seleção das crônicas de Carlos Drummond de Andrade, validar seu pensamento na qual aponta a crônica como um “gênero elástico, flexível, livre” e capaz de permitir “maior liberdade no estilo, no assunto, no método”. Por sua vez, em Beltrão (1980) encontramos a definição da crônica como forma de expressão para transmitir ao leitor, a opinião do autor sobre fatos, pensamentos e estados psicológicos pessoais em coletivos, sendo utilizada de maneira leve e concreta, mas dando ao leitor suas conclusões e julgamentos específicos.
Os aspectos transitivos da poesia expostos por Pedro Lyra3 (1986)
A partir deste momento, nos apoiamos em Lyra (1986) para esclarecer sobre os aspectos transitivos presentes nas substâncias que formam a poesia. Os escritos a seguir nos ajudarão a compreender conceitos que caracterizam a poesia afim de identificá-los nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade. Ainda, cientes de sua condição de poeta e seu legado artístico-literário através da publicação de poemas, destacamos a diferença entre a poesia e o poema sob a luz da literatura que comumente pode ser usado de maneira inversa pelo público em geral:
Como pode se deduzir, o poema é, de modo mais ou menos consensual, caracterizado como um texto escrito (primordialmente, mas não exclusivamente) em verso. A poesia, por sua vez, é situada de modo problemático em dois grandes grupos conceituais: ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema, mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana, o estado em que o indivíduo se coloca na tentativa de captação, apreensão e resgate dessa substância no espaço abstrato das palavras. (LYRA, 1986, p. 7)
A citação do autor nos permite entender que a poesia se mostra presente como um conteúdo impalpável; que não é capaz de ter vida própria sem pertencer a um outro ser. Neste caso, o outro ser é o poema como um produto concreto, palpável, cujo resultado se deu através da capacidade humana de captar uma substância abstrata suscitando a poesia. Assim, podemos compreender que a poesia pode se encontrar em pinturas, num pôr do sol e até em filmes mudos, desde que estejam compostos por substâncias que, em nossa condição humana, sequer sejamos capazes de tocar com a pele, ver ou cheirar, mas que sejam capazes de nos sensibilizar por meio de um código de linguagem entre o real e o imaginário.
Sobre estas substâncias da poesia presentes nas coisas, no mundo, Lyra (1986, p. 9) conceitualiza três categorias fundamentais de suas existências. São elas a Duração: “que define a existenciabilidade do ser e o situa no tempo, cronológico ou psíquico”, a Magnitude; “que define a dimensão do ser e o situa no espaço, físico ou mental” e a Aparência; “que oferece o ser à percepção dos sentidos ou da razão, situando-o no espaço e no tempo”. Ainda para o autor, estas categorias são essenciais porque suscitam em si condições fundamentais para existência:
[...] a aparência não é o contrário da essência, algo superficial, mas aquilo através do que o ser se exterioriza, a própria face captável da sua essência; a magnitude e a duração lhe oferecem os suportes indispensáveis e bastantes de espaço e tempo para a sua própria afirmação existencial. (LYRA, 1986, p. 9)
Uma vez que estes aspectos podem ser passageiros, Lyra os define como transitivos, os quais se apresentam passíveis à derivações que podem ser sistematizadas dentro de seis características. Na categoria de Duração, a antiguidade e a novidade; na de Magnitude, a grandeza e a pequenez; e na de Aparência, a feiúra e a beleza. Deste modo, estas características nos servirão de subsídios para a análise das crônicas de Carlos Drummond de Andrade nas quais estamos intencionados a identificação da poesia.4
Análise e Interpretação dos Resultados
A crônicas selecionadas para a exemplificação dos aspectos transitivos presentes na poesia propostos por Lyra (1986) foram: Na Treva, Os Olhos e A Fugitiva5, escritas entre os anos 1966 e 1967. A análise é elaborada para demonstrar que, através de seu papel de cronista, Carlos Drummond de Andrade poderia utilizar substâncias da poesia de modo que seu trabalho diário no jornal pudesse se manter interessante para o público através do que Melo (2003, p. 156) chama de “consciência poética da atualidade”. Ao encontro do título deste artigo que diz “a poesia na crônica do jornal contra a ‘chatice do cotidiano’”, exemplificaremos a tradução livre que Drummond faz de seu cotidiano, do Rio de Janeiro e do mundo, transformando através da poesia a realidade determinada pelos fatos, uma vez que, o envolvimento do autor com estes fatos, lhe dá margens para novas interpretações.
1° crônica: Na Treva
Na Treva é título da crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade no dia 31 de março de 1967 para o jornal Correio da Manhã. A crônica remonta o instante em que o cronista se preparava para jantar, quando foi surpreendido por um blecaute, consequência da última tempestade. No breu em que se tornara sua casa, com o tato sobre a quina dos móveis, o cronista se põe à procura de uma vela para trazer, novamente, à luz para seus olhos. Sem que pudesse encontrar uma vela em casa, o cronista reflete sobre o inesperado momento em que a falta de luz se revela como um fator surpresa, gerando na crônica o primeiro aspecto de novidade. Em nosso entendimento, a novidade aparece quando o cronista escreve que “a luz demonstra, mais uma vez, não ser eterna; é uma cardíaca, estoura na rua, em casa, a qualquer momento. No momento em que os cardíacos escolhem para morrer: momento impróprio”. (ANDRADE, 1985, p. 108)
Ao consideramos a explicação de Lyra (1986, p. 12) que diz “a impressão provocada pelo instante de reconhecimento é fonte de poesia exatamente porque traz um acréscimo ao ser humano, porque cria algo a mais no indivíduo”, encontramos no início desta crônica de Drummond, o aspecto de novidade quando a luz é apresentada como algo semelhante à nossa condição de seres humanos vulneráveis às fatalidades de ataques cardíacos. Esta forma de apresentação da luz, ao nosso entendimento, acrescenta a ela uma característica, anteriormente desconhecida que, agora, apenas se dá como nova a partir da exposição do cronista.
Na seqüência, ao se lembrar da mesa florida, dos pratos postos e a toalha, agora invisíveis na escuridão, o cronista se coloca na condição de não mais habitante de uma casa, cidade ou mundo, mas, sim, a de um “habitante da noite”. Cercado por um cenário metropolitano, encontramos nas palavras do cronista o aspecto de feiúra quando objetos como elevador, escada e a própria cidade, ganham qualidades fúnebres desproporcionais a sua natureza:
Este apartamento é o sítio em que as potências da escuridão marcaram encontro, e de onde nos expulsam. Expulsam para onde? Não temos onde ir. O elevador está morto, a escada em aspiral está morta, a cidade, atrás dos vidros do salão, é um defunto de membros espalhados entre morros, entrevistos ao clarão rápido de automóveis. (ANDRADE, 1985, p. 108)
Ao considerarmos os escritos de Lyra que conceitua o feio como “o atributo de tudo aquilo que, pela desproporção ou deformação dos traços de sua aparência, desperta a sensação de terror”, entendemos que a imagem da cidade representada por Drummond como “um defunto de membros espalhados entre morros”, exemplifica o conceito do autor. Neste aspecto, o feio ganha a dimensão de uma metrópole inteira, na qual concebe potencialidades para despertar repulsa e terror. Porém, para que estas potencialidades ajam sobre o objeto “cidade” do cronista, nos apoiamos novamente em Lyra (1986) para destacar que a feiúra não é algo meramente oposto à beleza, mas, sim, algo que necessita da grandeza para ser representada e atingir o seu objetivo:
[...] para produzir a sensação, a feiúra tem de se associar ao aspecto de grandeza: um ser de reduzidas dimensões, por mais desproporcional/disforme que seja, não tem o poder de produzi-la, simplesmente porque não ameaça a sobrevivência do sujeito que a contacta. (LYRA, 1986. p. 34)
Conforme a crônica se aproxima do fim, e o autor já se mostra conformado e sem esperanças de encontrar uma vela, identificamos o aspecto de pequenez com valor negativo, uma vez que o cronista se apresenta como algo fraco e pequeno, de modo que se contrapõe à outros seres vivos muito distantes de sua condição humana:
A civilização me faltou, a engrenagem dos serviços de utilidade pública me faltou, a Light me faltou. Chega. Fiquei em pé, imóvel no escuro, para não quebrar a cabeça e, algum ferro, ficarei esperando o quê? O quê? Se amanhã for racionada a luz do sol, e não aprendi a arte de viver na sombra, que torna felizes o tatu, a minhoca e o tenebrião. (ANDRADE, 1985, p. 109)
Ao encontro das palavras de Lyra, entendemos que na passagem acima, a pequenez se apresenta dentro do espaço afetivo, onde o cronista se representa de maneira insuficiente, a ponto de que não consegue atingir felicidade, como supostamente atinge uma minhoca, por exemplo, que durante sua vida está geralmente privada de luz. Embora não nos pareça claramente perceptível, ao longo da crônica identificamos a presença da pequenez através da dependência do autor sobre uma simples vela que, quando acesa, seria capaz de fazer com que todas as coisas ao seu redor voltassem a ter significado.
Por meio da exposição desta primeira crônica, podemos encontrar a manifestação das três categorias propostas por Lyra: a duração, com seu aspecto de novidade, através da falta de luz que metaforicamente se ligou à reação humana de um acidente cardíaco; a aparência, com seu aspecto de feiúra que deu à cidade características relacionadas à morte; e a magnitude, que pôde ser encontrada através do aspecto de pequenez quando o autor se contrapôs à capacidade de ser feliz como os seres meramente irracionais.
2° crônica: Os olhos
Escrita em 29 de novembro de 1967 para o jornal Correio da Manhã, a crônica Os Olhos denota marcas de um cronista apaixonado não-correspondido, porém não por um ser humano, mas, sim, meros retratos. Não esperando, de todo o seu carinho pela amada, uma retribuição, ele passa a admirar as fotos da moça a quem dedicou seus olhares. Conforme fazia menção a possível morada de sua amada, no Olimpo, encontramos como primeiro aspecto o de grandeza. Este, ainda pode ser concebido por duas maneiras diferentes: através de um elemento e uma situação.
Por esta simples dúvida se concluirá que para mim era deusa, e vale a conclusão. Deusa era, e distante, se bem que no plano horizontal. Sua imagem estava presente em torno e dentro de mim, multiplicada, perturbadora. Cercavam-me seus retratos; terei comido centenas deles, em lugar de arroz e carne. (ANDRADE, 1985, p. 76).
Juntamente com Lyra (1986, p. 21) que conceitua a grandeza “como o atributo de tudo aquilo que ultrapassa os limites da medianidade, identificável a partir da práxis cotidiana”, compreendemos que, ao tratar sua amada com a atribuição de “deusa”, o cronista denota sobre ela uma característica que entendemos estar além do cotidiano atual, uma vez que a transpõe a um ser mitológico. Já na grandeza concebida pela situação, identificamos sobre os retratos que teriam sido apaixonadamente “comidos” pelo cronista, no lugar do arroz e carne que, em conformidade com Lyra, é exemplificado através de um predicado de intensidade sem que haja a obrigação de ser comparado com qualquer outra situação.
Ainda que as referências tenham continuado apenas aos retratos, o cronista mergulha de maneira definitiva em seu universo lúdico, no qual encontramos mais uma vez o aspecto de grandeza sobre a situação por ele descrita, novamente ultrapassando os limites do cotidiano:
O pior era à noite, quando os retratos começavam a mover-se, luminosos no escuro, e eu lúcido e amoroso (pois não se tratava de delírio) via minha amada afundar-se nas maiores aventuras, perigos e amores. Nada podia fazer para impedi-lo. Terrivelmente assistia a tudo, bêbado de paixão, e mais nessa paixão me afogava, brejo, amazonas, oceano, e afogado amava. Com os olhos. (ANDRADE, 1985, p. 77)
Embora já tenhamos citado através de Lyra que a grandeza está entre os aspectos mais comuns da poesia, a crônica que nos referimos serve como exemplo. Neste caso, o grande agora se apresenta, apenas, através da situação em que o cronista se vê afogado em lugares diferentes e, além disso, amando somente com olhos, o que nos pressupõe a pensar que o autor esteja se referindo às suas lágrimas quanto ao “afogamento”. No decorrer da crônica até seu final, o cronista se depara, mais uma vez, com uma ocasião lúdica determinante para atestar a manifestação da grandeza como único aspecto presente na crônica no qual identificamos:
Voltou agora, parece que desta vez querendo impressionar-me. Saltou à minha frente um retrato com chapéu de cowboy, retrato que, sorrindo, me oferecia um refrigerante. Obrigado, mito. Mas como posso imaginar-te como esse sombreiro? Como ligar-te a essa garrafinha? Não são estes os feitiços próprios a cativar-me uma segunda vez. (ANDRADE, 1985, p. 77)
Mesmo que nesta transcrição o aspecto de grandeza não nos pareça tão intenso quanto os anteriores, novamente o cronista remete a amada em seu retrato à condição de deusa quando ele agradece ao referi-la como “mito”. De outro modo, também atinge a grandeza quando o retrato salta à sua frente que, por esta maneira, podemos concluir o aspecto predominante na crônica Os Olhos.
3° crônica: A Fugitiva
Para que se torne compreensível a crônica “A Fugitiva”, escrita em 10 de abril de 1966 para o jornal Correio da Manhã, e diferente das duas crônicas já analisadas, é preciso que façamos um pequeno resgate histórico para contextualizá-la.
Em 17 de janeiro de 1966 (MAACK, 2008)6, tempo em que os aviões ainda não tinham tecnologia o suficiente para atravessar o oceano Atlântico sem fazer reabastecimentos, um avião-bombardeiro e um avião-tanque se chocaram durante uma manobra para abastecimento aéreo. Ambos os aviões que sobrevoavam a Espanha naquele momento, explodiram, mas, das quatro bombas de hidrogênio que estavam dentro do avião-bombardeiro, apenas uma delas não caiu sobre terra firme. Esta, a bomba “H” a qual o cronista se refere em sua crônica, permaneceu no mar Mediterrâneo a 800 metros de profundidade, por 81 dias, até ser resgatada pelos navios e patrulheiros de guerra norte-americanos.
Com base neste acontecimento, Drummond inicia sua crônica sobre a bomba “H” que se mantinha “irredutível” sem deixar esperanças de que abandonasse o seu “refúgio lodoso” nas profundas águas do mar Mediterrâneo. Sobre este aspecto, inicia-se um diálogo de negociação entre bomba “H” e patrulheiros com o intuito de trazê-la novamente à superfície. Receosos de que a bomba pudesse explodir a qualquer momento, por contra própria, os mais de três mil oficiais fazem o apelo “Não faça isso com a gente”, em tom de suplica, conforme descreve o cronista. Embora o número de indivíduos (três mil) nesta passagem nos pareça elevado, não a consideraremos pertencente ao aspecto da grandeza, pelo motivo de não nos apresentar intensidade de maneira absoluta dentro do contexto. Cientes de que a crônica foi escrita no período da Guerra Fria, não podemos eximi-la da II Guerra Mundial, sua gênese trágica. Neste tempo em que bombas atômicas eram fontes das reações de medo no mundo, indagamo-nos sobre quantas pessoas mais, em todo o planeta, poderiam pensar ou dizer o idêntico “Não faça isso com a gente”. A exemplo disto, nos servem os habitantes do município de Palomares, na Espanha, que por um golpe de sorte não sofreram com as bombas que caíram intactas sobre seu território. Intrínsecos a este fato, também eximimos o aspecto de novidade, uma vez que, súplicas como estas puderam ter ocorrido até mesmo em dimensões maiores e poderiam arrasar uma cidade inteira. Neste aspecto, Lyra reforça a necessidade de ambas, a grandeza e a novidade, estarem ligadas entre si, para serem possuidoras de carga poética:
[...] já que ninguém pode exigir que ele [o poeta] aborde apenas coisas belas: a de grandeza limita-se à área substancial dos conteúdos (sentimentos, pensamentos, atitudes), mesmo quando o poeta se expressa por formas breves, como nos sonetos – já que ninguém pode exigir que ele se expresse apenas por formas grandiosas; mas a exigência de novidade estende-se (e como plena persistência) a essas duas áreas intrínsecas do poema: exige-se novidade de expressão e novidade de conteúdo – o que comprova, mais uma vez, a identificação radical entre poesia e novidade. (LYRA, 1986, p. 55)
Ao concluir esta sua afirmação, Lyra esclarece que quando um texto não alcança estes aspectos, onde está reunida a poesia, pode-se dizer que o texto não contém poesia porque não transformou em verbos beleza, grandeza ou novidade, nem em modo de expressão ou conteúdo. Por outro lado, na passagem da crônica em que a bomba “H” ainda se nega em deixar o fundo do mar, a grandeza se mostra presente, no momento em que ela culpa os homens pela sua própria angústia, ultrapassando as características de um ser meramente inanimado:
− Vocês, aos nos criarem, não deram somente uma nova angústia à humanidade. A nós também nos rechearam de angústia. Ficamos ansiosas por explodir − e nada. É hoje, é amanhã, e nunca se resolve. Acabamos ficando mais angustiadas do que as populações se angustiam por nossa causa. E vocês fazem disso um jogo, vocês e os outros. (ANDRADE, 1986, p. 33)
Deste modo, ressaltamos que a grandeza acontece mais uma vez, como já vimos nas duas crônicas anteriores, devido ao fato de seu objeto denotar peculiaridades que estão além da medianidade cotidiana. A angústia, que compreendemos como uma aflição acompanhada de certa tristeza, apenas presente em seres com capacidades sensitivas e humanas, é incorporada à bomba “H” através do cronista que, ainda, potencializa este sentimento ao dizer que é maior do que toda a população que teme pelas bombas.
Na seqüência em que a bomba “H” ainda reforça o seu sentimento de angústia, outro aspecto nos parece presente. Agora, a antiguidade surge pela primeira vez em nossa análise, que traz ao objeto “bomba” uma carga poética devido às circunstâncias em que ela é contextualizada:
Vamos envelhecendo, outros engenhos nos passam para trás, amanhã a Lua será ocupada e equipada com armas fantásticas, astros e planetas entrarão no brinquedo, e nós apodrecendo por aí, sem uso, sem empréstimo. Por isso aproveitei o desastre de avião e caí fora. Quero me livrar dos homens. (ANDRADE, 1986, p. 33)
Na apresentação deste aspecto de antiguidade, identificamos que o objeto em questão, a bomba “H”, carrega em si o que Lyra (1986, p. 16) diz como um “testemunho de uma época que passou”, uma vez que o objeto bomba é demonstrado de modo que perderia o seu sentido de grandeza com o passar dos anos devido às outras tecnologias, estabelecendo cada vez mais seu aspecto de antigo. Ainda baseados em Lyra, podemos ressaltar que esta passagem da crônica denota o valor negativo da antiguidade, já que o cronista diz no papel de bomba “H” que pode ser esquecido com o passar do tempo, sem que haja uso ou empréstimo de si, até que apodreça:
[...] o antigo também pode apresentar-se com valor negativo: é quando significa a permanência de algo superado e, por isso, indesejado, bloqueando o espaço para o aparecimento e a afirmação do novo. Aí ele se define como velho, decadente, ultrapassado e provoca um certo repúdio à consciência do sujeito. (LYRA, 1986, p. 19)
Além deste aspecto de antiguidade condensar a perda de grandeza a ponto em que ganha um valor de negativo, não podemos desconsiderar a presença do aspecto de feiúra, na passagem que citamos. Neste aspecto, a bomba “H” nos parece apresentada no sentido de inutilidade até que, já decomposta pelo tempo, possa ser descartada, deformando o seu sentido de existência que culminaria em uma explosão. Porém, este nosso pensamento parece encontrar certa adversidade com Lyra (1986, p. 36) onde diz que “para produzir a sensação, a feiúra tem de se associar ao aspecto de grandeza”, já que “um ser de reduzidas dimensões, por mais desproporcional/disforme que seja, não tem o poder de produzi-la”, por não ameaçar a sobrevivência do sujeito estabelece contato.
Em vista dessa afirmação de Lyra, explicamos que, dentro desta passagem, a bomba “H” perde o seu sentido grandeza até que denote o aspecto de feiúra, pelo simples fato de perder a característica de destruição massiva a ponto que, arruinada e podre, não exerça mais a sua função. Por isso, o feio não estabelece ameaça e perde o seu aspecto de grandeza natural pelo fato de se mostrar, agora, um objeto deteriorado pelo tempo.
Embora tenhamos entendido que a crônica A Fugitiva nos possibilitou menos passagens com marcas poéticas – apenas duas – em relação às crônicas anteriores, a presente crônica nos foi a que melhor condensou a transitividade dos aspectos sobre um mesmo ser, uma vez que a bomba “H” carregou em si aspectos interdependentes durante o decorrer do texto que termina com a captura da bomba pelos patrulheiros, mas, desta vez, sem nos revelar algum aspecto transitivo.
Considerações finais
A crônica surge no jornal como um produto jornalístico por depender, primeiramente, do próprio jornal para ser publicamente expressada. Embora possamos encontrar crônicas escritas especificamente para os livros, a crônica no jornal ganha o aspecto jornalístico por possuir condições essenciais para a manifestação jornalística. Melo (2003) é quem as destaca como a atualidade, a oportunidade e a difusão. Alimentada por fatos cotidianos, a crônica é geralmente concebida por ocorrências que fazem parte de um tempo presente que compreendemos ser interessante ao público do cronista. Embora nem todos os fatos cotidianos possam ser de interesse do público, neste aspecto a oportunidade se mostra necessária quando o cronista possui a consciência de escrever sobre os assuntos mais adequados para a publicação. Ao considerarmos a atualidade e oportunidade como características presentes na crônica, a difusão finda o processo de condições jornalísticas que significa a disseminação de sua mensagem, a qual é recebida pelo público-leitor, assimilando-a e fazendo dela um objeto gerador de opiniões.
Através dos modos pelos quais as coisas no mundo se exteriorizam e nos provocam reações, encontramos em nossa amostragem todos os aspectos transitivos da poesia propostos por Lyra (1986): novidade, antiguidade, beleza, feiúra, grandeza e pequenez. Destacados os requisitos básicos para a existência dos seres, identificamos que todas as reações ocasionadas por estes aspectos têm como razão proporcionar ao sujeito um efeito sobre ele. Este efeito aparece através de um estímulo, o qual exige resposta sobre os sentidos, a sensibilidade e a consciência do sujeito. Neste caso, ressaltamos que estes estímulos não surgem do objeto ou situação em si, mas de alguns aspectos pertencentes as suas particularidades. Sobre a observação destes aspectos pertencentes às particularidades dos seres, o cronista tem a possibilidade de retratá-los ao ponto em que desperte no leitor, através de características da duração, magnitude e aparência, a sua atenção para os fatos cotidianos.
A presença destes aspectos que concebem a poesia, nos ajudam a identificar dentro das crônicas de Carlos Drummond de Andrade, o que Melo (2003) chama de consciência poética no cronista, que tem possibilidades de manter vivo, o interesse de seu público pela leitura. Deste modo, a consciência poética nos surge como fator importante para que o cronista, e seus próprios assuntos, não caiam na monotonia do cotidiano a ponto que a falta de assunto se torne o tema do dia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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- ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
- ANDRADE, CARLOS Drummond de. Caminhos de João Brandão. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1985.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. Moça Deitada na Grama. Rio de Janeiro: Record, 1987.
- ANDRADE, Carlos Drummond de. O poder ultra jovem. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
- BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980.
- COSTA, Cristiane. Pena de Aluguel: escritores jornalistas no Brasil 1904-2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
- COSTA, Viegas Fernandes da. O que é Crônica? Disponível em: http://www.abarata.com.br/Arquivo_Detalhe.asp?Codigo=386. Acesso em: 9 ago. 2009.
- LYRA, Pedro. Conceito de poesia. Ática: São Paulo, 1986.
- MAACK, Benjamim. As bombas atômicas desaparecidas na Guerra Fria. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/11/15/ult2682u992.jhtm Acesso em: 10. out. 2009.
- MELO, José Marques de. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3.ed. rev. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003.
- MELO, José Marques de. Teoria do Jornalismo: identidades brasileiras. São Paulo: Paulus, 2006.
- SÁ, Jorge de. A Crônica. 6. ed. São Paulo: Ática, 2002.
- SOUSA, Jorge Pedro. Elementos de jornalismo impresso. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.

1Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Faculdade Ibes/Sociesc. E-mail: tiago.ribeiros@terra.com.br Este endereço de e-mail está sendo protegido de spam, você precisa de Javascript habilitado para vê-lo . Mestrando em Educação/FURB
2Carlos Alberto Silva da Silva, orientador, mestre em Literatura Brasileira pela Ufsc. Professor da disciplina Livro-Reportagem do curso de Jornalismo da Faculdade Ibes/Sociesc. E-mail: carlosnago@yahoo.com.br Este endereço de e-mail está sendo protegido de spam, você precisa de Javascript habilitado para vê-lo
3Pedro Lyra é poeta, crítico e ensaísta. Pós-Doutorado em Tradução. Professor Poética pela Universidade de Paris-III/Sorbonne Nouvelle, onde foi "Chercheur Invité" (2004-05). Titular de Poética da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos-RJ (desde 2001).
4Em concordância com nossa intenção de pesquisa embasada nos conceitos de poesia propostos por Lyra (1986), não nos ateremos aos recursos poéticos de imagem como prosopopéias, gradações, metáforas, epizeuxes e etc., embora possam ser encontradas nas três crônicas selecionadas.
5As três crônicas podem ser encontradas no livro Caminhos de João Brandão de Carlos Drummond de Andrade
6MAACK, Benjamim. As bombas atômicas desaparecidas na Guerra Fria. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2008/11/15/ult2682u992.jhtm Acesso em: 10. out. 2009.

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